
E se. Não são raras as vezes em que nos colocamos nesta posição de suposição, mas muito dificilmente o fazemos quando em causa estão hipotéticos episódios de sofrimento, de dor, de mudança. Mas, e se a sua vida começasse do zero à boleia de uma doença totalmente inesperada?
O ‘e se’ fez parte da história de Andreia. Um conjunto de sintomas mais ou menos comuns do dia-a-dia passaram a ser vistos como um ‘e se for algo mais grave’? E era. Com 18 anos, Andreia Lima viu a sua vida mudar. O falecimento inesperado da avó despoletou em si “uma série de sentimentos e de raiva”, mas não só. Uma doença até então adormecida decidiu acordar e mudar por completo o rumo da sua vida.
Aos 18 anos, Andreia, agora com 25, foi diagnosticada com Colite Ulcerosa, uma patologia inflamatória crónica do intestino, caraterizada por sangramentos internos e nas fezes e pelo aparecimento de úlceras, podendo levar a complicações graves e até mesmo à remoção do órgão. O ‘e se’ de Andreia era real e passou a andar sempre anexado a si. “É a vida por um saco, literalmente”, conta a jovem de Almada à Women’s Health.
Presente de aniversário
Após o falecimento da avó, “a pessoa mais importante da minha vida”, Andreia começou “a perder sangue nas fezes, a perder peso, passei a ir muitas vezes à casa de banho, mas associava a algo que tivesse comido. Nunca damos muita importância a estes sinais, até que comecei a perder sangue mais regularmente e a achar que poderia ser algo mais grave”.
O medo que se instalou em si levou-a ao médico de família. Sintomas e queixas apresentadas e eis que chega o diagnóstico: hemorroide. Mas este era um diagnóstico errado e que viria a acelerar todo o processo penoso pelo qual Andreia passou. “Este diagnóstico foi o pior que me poderiam ter feito, os laxantes eram fortes, aceleraram o processo e se o intestino não estava bom, ficou muito pior”.
Passados meses e com todos os sinais da doença a agravarem-se, a jovem foi para o hospital: “Entrei na urgência e já não me deixaram sair. Fiquei internada 15 dias e passados muitos exames e análises fizeram-me o diagnóstico correto”.
E assim começaram “cinco anos de doença ativa, cinco anos de muitas complicações, de muitos internamentos”. Foram cinco anos de luta contra os efeitos inesperados dos tratamentos, cinco anos que levaram a uma decisão: o saco, uma extensão do seu corpo que causa ainda estranheza aos olhos de muitos, mas que, para Andreia, era um sinónimo de vida.
Apesar de a ileostomia [cirurgia em que o ileo é exteriorizado pela parede abdominal, dando origem a um novo trajeto e um novo canal para a saída das fezes] não ser, no início do processo, uma “opção para os médicos, porque é mesmo o último recurso”, Andreia insistiu. “Eu já estava desesperada, queria mesmo viver e sabia que isso não ia acontecer se não fosse operada. Já ia mais vezes à casa de banho por dia, já estava num grande desgaste psicológico e físico, não tinha mesmo vida, não conseguia ir às compras ao shopping, não conseguia ir à caixa do correio, não conseguia descer sequer as escadas sem ter de socorrer a uma casa de banho”.
Mesmo com todos os conselhos médicos em contrário, Andreia tinha a “consciência de que queria o saco”, uma decisão que muitas pessoas na mesma situação iriam tentar rejeitar ao máximo – e uma decisão que os próprios médicos não levaram logo a cabo. “Sabia que o saco me iria dar aquilo que eu queria a nível de qualidade de vida, mas para eles o saco nunca é a melhor opção, pois é algo que vai mexer sempre muito com o psicológico e com o físico das pessoas”.
A equipa médica realizou uma primeira tentativa de solução interna, mas sem sucesso. “Fiz ao todo seis grandes cirurgias e mais de 23 idas ao bloco operatório, mas por volta da terceira operação, a maior, foi quando fiquei com o saco. Fui operada no meu dia de anos, fiz os 24”. E foi o presente que Andreia mais desejara naqueles meses de luta, um presente que será para a vida toda.
“Há situações em que é possível reverter, mas no meu não, ficou definitivo, porque tiveram de me tirar o intestino na totalidade, ficou apenas um pouco do delgado e, neste momento, a não ser que a medicina evolua bastante, será para sempre”.
A vida por um saco
Andreia tinha em mente tudo o que a esperava. A sua vida iria mudar, mas tudo ficaria a olho nu. E por culpa de um saco. “Preparada [para ficar com o saco] uma pessoa nunca está, uma coisa é saber, outra é sentir no corpo aquela mudança, mudança que vai ficar para sempre, no meu caso”, conta-nos, confessando que “a adaptação foi muito fácil, disseram-me que ia ser um choque, mas não tive qualquer problema porque foi uma escolha minha e ia preparada para isso. Tinha tantos objetivos cá fora que tudo isto eram pormenores”.
Consciente das mudanças que estavam a acontecer no seu corpo e de todo o impacto que isso estava a ter e viria a ter na sua autoestima, “quando coloquei o saco, quis logo ver, mexer e perceber as coisas e seguir em frente, mas estava muito, muito desgastada das cirurgias, estava muito cansada psicologicamente. Todos os dias tinha de ir ao bloco, as coisas não estavam a correr bem, quando diziam que as coisas iam correr bem, tudo corria mal e isso deu cabo do meu psicológico, não a parte do saco, mas sim todo o processo, complicações e falta de respostas. Cada ida ao bloco era uma prova, porque era uma anestesia geral, era uma luta entre o corpo e toda a medicação que já não aguentava, as coisas tiveram mal paradas e isso, sim, assustava-me”.
Um ano depois da ileostomia, Andreia diz ter uma “vida completamente normal” e mantém ativo um blogue que criou no período de internamento. Crónicas de Uma Barriga Renovada é o nome da página – e do Instagram –onde desmistifica a doença e onde, sobretudo, mostra o seu corpo, as suas mudanças e a importância da aceitação corporal.
“No hospital decidi criar o blogue, não só para me ajudar a mim, mas também porque sentia que precisava de ajudar quem estivesse a passar pelo mesmo. Posso dizer que todo este processo, apesar de difícil, foi o melhor da minha vida. Pode ser estranho dizer isto, mas é o que sinto, renasci. Eu era uma Andreia que morreu, se calhar, numa ida ao bloco, sinto-me outra pessoa, cresci bastante”, confessa à Women’s Health.
As imagens são parte da história que quer contar, mas são também ainda alvo de crítica, até mesmo por quem passa ou passou pela mesma doença. “Recebo muitas mensagens de pessoas que vão passar, estão ou passar ou já passaram pelo mesmo. A mudança física mexe muito com as pessoas, é o nosso corpo, sofre uma grande alteração e o saco é algo que está ali e as pessoas nem sempre aceitam. Mas, já recebi mensagens menos positivas, mas ignoro, não no sentido de não ouvir as pessoas, porque ouço, isso é aprendizagem, mas porque o que elas me dizem não me transmite nada de positivo e não preciso disso na minha vida, preciso de coisas boas e de luz. E por vezes são pessoas portadoras de saco a criticarem o facto de eu mostrar, mas isso a mim não me diz nada. Que elas não o consigam fazer, é perfeitamente aceitável e eu fazer é uma opção minha, tal como me poderia ter mantido no anonimato e ninguém saberia que tenho um saco. Eu decidi partilhar a minha história e tentar fazer a diferença na vida das pessoas, mas, claro que há pessoas que não lidam bem com isso”.
E há um episódio que Andreia recorda: “Quando coloquei fotos na praia, recebi mensagens de uma senhora também com saco a dizer que achava aquilo inadmissível, porque ninguém tem de saber que tenho um saco, mas isso faz-me muita confusão e quando é assim desejo a maior sorte à pessoa e a conversa fica por ali. Para mim, não tem lógica, porque, lá está, não sou eu que me tenho de esconder, são os olhos dos outros que têm de mudar, porque tudo o que é diferente incomoda. Daí também ter feito umas bolsas personalizadas para que as pessoas olhem no sentido ‘que giro’ e não com repulsa”.
Pronta para mudar mentalidades
Quando inesperadas ou não desejadas, as mudanças corporais pode ser difíceis de aceitar. No caso de Andreia, mesmo sabendo que toda a sua barriga seria um campo de batalha constante, a aceitação mostrou-se fundamental para a sua autoestima. Mas, como seria de esperar, o passado é, por vezes, inimigo.
“Há dias em que a autoestima vai abaixo, o que é normal. Fiz várias sessões fotográficas antes e depois, porque queria ter essa recordação. Olho para as fotos do antes e tenho saudades do meu corpo e aquela sensação do para sempre assusta, porque para sempre é muito tempo, nunca mais vou ter aquele corpo e é o nunca mais que custa. Daí ter lançado logo o blogue com fotografias para mostrar, foi um género de defesa para mim mesma. Foi do tipo, se consigo mostrar aos outros, consigo aceitar-me a mim mesma. Há dias que é complicado, que tenho saudades, mas sei que sou muito feliz agora. Tive a opção de fazer a cirurgia plástica para remover as cicatrizes e recusei, acho que não faz sentido, é uma coisa minha, quando olho para ela diz-me muito, se fizesse era pelos outros, não por mim”, esclarece.
Quando questionada sobre a sua força e resiliência, Andreia coloca os objetivos pessoais na linha da frente. “Agarrei-me a isso. Não desisti no hospital porque tenho objetivos, tenho coisas por concretizar. Acho que isso foi o que me agarrou à vida”.
Mesmo internada no hospital, Andreia “queria ter algo para fazer e até tentei arranjar lá trabalho porque queria estar entretida e ter objetivos foi o que me agarrou. E isso continua, hoje em dia, tenho objetivos, tenho ideias novas que quero concretizar e não me posso agarrar à doença, porque se me entregar – o que acontece com a maioria dos portadores de sacos – entro em depressão, isolo-me, não saio de casa, não ou à praia”.
Com as memórias bem presentes – e que parece não querer esquecer – Andreia quer olhar para o futuro e ajudar todos os portadores da doença a fazer o mesmo. Mas não só. Há também a vontade de mudar mentalidades e de expor a doença tal como é, sempre na tentativa de melhorar a aceitação.
“A mensagem que é importante passar é que nada disto é o fim e a pessoa que fica portadora de um saco é o início de uma nova vida, que não tem de ser má, de todo. Não é fácil, não é, temos momentos muito difíceis, mas nada se compara ao entre viver e morrer, porque às vezes é mesmo essa a situação, a vida ou a morte. É a vida por um saco, literalmente”.